quarta-feira, 10 de maio de 2017

O juízo do gosto segundo I. Kant.

Serão os juízos estéticos uma questão de gosto? Se forem, podemos afirmar, orgulhosamente como o provérbio, que gostos não se discutem. Contudo, a nossa resposta não poderá ser esta ou, pelo menos, de forma perentória. De que falamos quando usamos a palavra estético? O que é ou não estético? Qual a natureza dos juízos estéticos?

Para a abordagem ao conceito de ‘estética’ existem três respostas: a noção de experiência estética, a noção de atitude estética e a que defende a existência de propriedades estéticas. Desta forma, as teorias “orientadas para o sentimento [noção de experiência estética] destacam geralmente uma forma especial de prazer, o prazer estético. As teorias da atitude estética destacam um tipo especial de estado psicológico, a atenção desinteressada. As teorias orientadas para o conteúdo destacam um tipo particular de qualidades ou características que se podem encontrar em certos objetos, as propriedades estéticas”. Na distinção do que é ou não é estético, qualquer uma desta três abordagens apresenta dificuldades. Contudo, em vez de descrever quer uma atitude do sujeito que tem a experiência, quer o seu conteúdo, a primeira resposta, a experiência estética, “centra-se diretamente na emoção particular inerente à própria experiência”.
Immanuel Kant, através da obra Crítica da Faculdade do Juízo, datada de 1790, debruça-se sobre esta problemática. O juízo estético, que é expressão da experiência estética, é determinado por uma experiência ou sentimento subjetivo. Que tipo de sentimento será este? Para o autor é o sentimento de prazer ou desprazer, como afirma ao dizer que “para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação, não pelo entendimento ao objeto com vista ao conhecimento, mas pela faculdade da imaginação (talvez ligada ao entendimento) ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer”. Afirmar que a experiência estética se carateriza pelo sentimento de prazer ou desprazer, parece-nos que não basta, razão pela qual o autor vai desenvolver esta característica, como veremos mais à frente. Por agora, centremo-nos nesta ‘faculdade de imaginação ligada ao sujeito e ao seu sentimento’ que deixa adivinhar a sua posição subjetiva em relação à natureza dos juízos estéticos que, como o próprio reafirma ao dizer que “o juízo do gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo”. Para reforçar a ideia do subjetivismo, Kant continua no mesmo parágrafo do texto da Crítica da Faculdade do Juízo a afirmar que embora toda a referência a representações, mesmo as das sensações possa ser objetiva, ela não poderá ser quando se refere ao “sentimento de prazer e desprazer, pelo qual não é designado absolutamente nada no objeto, mas no qual o sujeito se sente a si próprio do modo como ele é afetado pela sensação”.
O juízo do gosto, que é predominantemente o juízo do belo, é um juízo estético que é inteiramente determinado por uma experiência ou sentimento subjetivo. Mas será o sentimento de prazer ou desprazer suficiente para distinguir a experiência estética de outras experiências que dificilmente classificaríamos de estéticas? Como por exemplo: o prazer que me dá comer a minha comida preferida é diferente do prazer que sinto ao ver o meu trabalho reconhecido; o desprazer que me dá beber água fria é diferente do desprazer de ver palácios em ruínas. Perante esta dificuldade em distinguir experiência estética de outros tipos de experiência, Kant responde ao dizer que a experiência estética não é um prazer qualquer, mas um ‘comprazimento desinteressado’, ou seja, “cada um tem que reconhecer que aquele juízo sobre a beleza, ao qual se mescla o mínimo interesse é muito faccioso e não é nenhum juízo de gosto puro. Não se tem que simpatizar minimamente com a existência da coisa, mas pelo contrário ser a esse respeito completamente indiferente, para em matéria de gosto desempenhar o papel de juiz”.
Podemos, então, distinguir quatro caraterísticas fundamentais no pensamento de I. Kant para a definição do juízo estético: primeiro, o juízo estético é um juízo subjetivo, ou seja, o prazer que sentimos daquelas experiências que achamos belas depende dos sentimentos do indivíduo e não são propriedades dos objetos. Sendo o juízo estético um juízo do gosto é um juízo subjetivo, ao contrário dos juízos cognitivos, que são juízos objetivos.
Mas quando afirmamos que um juízo estético depende dos sentimentos do sujeito não queremos dizer que o juízo estético diz respeito aquilo que é belo apenas para mim. Aqui entra a segunda característica dos juízos estéticos, segundo Kant, a universalidade. Dizer que «isto é belo» é dizer, não só, que a beleza precisa de ser apreciada subjetivamente, mas ao declararmos que algo é belo estamos a querer dizer que há qualquer coisa nesse objeto que fará que qualquer outras pessoas, nas mesmas condições, deveriam ter o mesmo tipo de sentimento de prazer, ou seja, os juízos estéticos têm a mesma validade universal. O que por vezes muda são as condições, mas “se as condições fossem exatamente as mesmas, não haveria divergência de gostos, pois as nossas faculdades, incluindo a faculdade do gosto, funcionam de forma idêntica em todos”. Quando referimos que nas mesmas condições qualquer pessoa deveria ter o mesmo tipo de sentimento, segundo a perspetiva Kant, estamos aqui a introduzir uma outra dimensão, a dimensão da normatividade que aparece associada à dimensão da universalidade, ou seja, o juízo de gosto é considerado universal quando ele é válido não apenas para quem o profere, mas para todos. Neste sentido, independentemente do gosto ou das preferências de cada um, quando consideramos algo de belo o juízo que emitimos deve ser, ou procurar ser, aceite por todos.
Interessante é a forma como Kant enquadra duas caraterísticas que parecem estar em contradição: a subjetividade e a universalidade/normatividade. Kant acaba por refutar a posição do subjetivismo radical, que defende que os juízos estéticos têm apenas validade individual, dependem absolutamente das preferências individuais de cada sujeito.
A terceira caraterística, como já o afirmamos, consiste na afirmação de que o juízo estético é desinteressado, ou seja, “assenta num tipo de resposta da parte do sujeito que é independente de quaisquer finalidades práticas”. Neste sentido, o juízo estético é desinteressado de qualquer interesse prático ou de qualquer necessidade do sujeito, distinto do que é agradável porque “é o que apraz aos sentidos na sensação” e distinto do que é bom porque “denominamos bom para (útil) algo que apraz somente como meio”. Podemos ainda afirmar que o prazer estético é desinteressado porque não requer a existência real dos objetos, é um “prazer contemplativo, pois consiste no mero comprazimento pela coerência das formas percecionadas”.
Por fim, a quarta característica é a de que o juízo estético é um juízo imaginativo, “a experiência que tal juízo exprime não é apenas sensorial, envolvendo também as faculdades da imaginação e do entendimento numa espécie de jogo entre si, liberto de quaisquer regras e sem qualquer propósito ulterior”.
Para Kant um outro juízo de gosto que se distingue dos juízos sobre o belo são os juízos sobre o sublime. E entre os juízos do belo e juízos do sublime existem diferenças. Enquanto o “belo da natureza concerne à forma do objeto, que consiste na limitação; o sublime, contrariamente, pode também ser encontrado num objeto sem forma, na medida em que seja representada nele uma ilimitação”. Se o belo diz respeito a um ‘sentimento de promoção da vida’, por sua vez o sublime comporta uma “inibição de forças vitais e pela efusão imediatamente consecutiva e tanto mais forte das mesmas”. Enquanto um diz respeito à qualidade (belo) o outro representa a quantidade (sublime), “quando somente magnitude e poder se deixam ver”. Distinto do belo, o sublime é um juízo estético que brota do espanto, do medo, do respeito perante os aspetos extraordinários da natureza, mas não se trata apenas da constatação dos fenómenos poderosos da natureza e da sensação de fragilidade perante os mesmos, é, sobretudo, a constatação de que a liberdade moral do sujeito é “infinitamente maior que a própria natureza”.
Contrariamente ao objetivismo, acerca da natureza dos juízos estéticos, que defendem que os juízos estéticos são propriedades que os objetos por si só possuem, ou seja, são verdadeiros ou falsos em função das suas propriedades e não em função do sujeito que perceciona. Distinto do subjetivismo radical, como já o afirmámos, a posição de I. Kant inscreve-se na mesma de David Hume, o subjetivismo moderado, sendo que para este último o ‘padrão do gosto’ é o critério segundo o qual os juízos estéticos são verdadeiros ou falsos.
Júlio Maria


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