quinta-feira, 18 de maio de 2017

A comunicação, a interpretação e a intenção do artista

Lev Tolstói começa desta forma o décimo sexto capítulo da sua obra O que é a arte? ao afirmar que a arte “juntamente com a linguagem, é uma forma de comunicação… [que] torna possível que as pessoas das gerações posteriores sintam  todos aqueles sentimentos que outros antes delas sentiram…e, como sucede com a evolução do conhecimento…da mesma maneira se dá a evolução dos sentimentos veiculados pela arte…e por isso a arte é tanto melhor no seu conteúdo quanto mais ela cumpre esse propósito”. Desta forma, segundo Lev Tolstói o propósito da arte é exprimir sentimentos e, quando exprimimos sentimentos, fazemo-lo a alguém comunicamos com esse outro. Portanto, a arte é uma forma de comunicação, de transmissão de sentimentos: o artista (produtor) comunica ao público (consumidor) os seus sentimentos (mensagem), de modo que estes sentimentos possam ser partilhados por todos através da sua obra (canal de transmissão). Mas, será necessário conhecer os sentimentos do artista para compreender a verdade da obra ou, pelo contrário, bastará esta para aceder aos sentimentos do artista ou, ainda, será estritamente necessário conhecer os sentimos, intenções ou motivos da obra para que ela possa ser verdadeiramente interpretada? É indubitável que qualquer obra de arte seja uma forma de comunicação, de transmissão de sentimentos, mas será que devemos conhecer os propósitos da obra para a interpretarmos ou bastará a obra por si mesma?

Uma área importante no debate filosófico é a questão de saber até que ponto as intenções manifestas do artista, que produz, são relevantes para a interpretação crítica de uma obra de arte. Como tentativa de resposta a esta questão sugiram duas perspetivas: o intencionalismo e o anti-intencionalismo.
O intencionalismo tem em conta as intenções do autor, ou seja, estas intenções revelam-se fundamentais para a correta interpretação da obra, seja ela de música, arquitetura, escultura, de qualquer tipo de arte, devendo-se ter em conta os indícios externos. Pelo contrário, os anti-intencionalistas defendem “que só temos de dar atenção às intenções presentes na própria obra”. Assim, devemos ter em conta apenas os indícios internos, aqueles que estão contidos na própria obra. Para estes últimos a verdadeira crítica ou interpretação é indiferente das informações recolhidas: títulos dados pelos artistas; explicações dadas pelos mesmos; entrevistas; manifestos artísticos.
Para a perspetiva intencionalista, “um artista tem sempre uma intenção ao criar uma obra de arte, mesmo quando a obra de arte é um exemplo de «arte acidental»”. Desta forma, um músico, um compositor tem sempre a intenção de compor uma música, com diversas qualidades musicais, que desperte determinados sentimentos em quem vai ouvir. Um pintor tem a intenção de reproduzir certo tipo de efeito ao pintar uma paisagem. Um poeta que cria um poema fá-lo com uma determinada intenção, com um determinado tema para comunicar uma mensagem. Segundo esta perspetiva, as intenções do artista desempenham um papel fundamental na interpretação das obras., razão pela qual alguns “pensam que a intenção do artista é importante quer para compreender as obras de arte quer para as avaliar”, mas mesmo dentro da perspetiva intencionalista há quem negue “a importância da intenção para a avaliação”.
O que está em causa neste último ponto é a tentativa de usar a intenção do artista como critério avaliativo que é diferente da questão de saber como a intenção do artista se relaciona com a compreensão da obra de arte. Assim, a “afirmação valorativa intencionalista é a de que uma obra de arte é boa se o seu criador conseguiu realizar o que pretendia, ou má na medida em que não consegue realizar a sua intenção”. Esta intenção valorativa enfrenta algumas dificuldades: a primeira é a de que podemos não conhecer ou descobrir qual a intenção do autor (autor sobre o qual não existe referência alguma); a segunda é que por melhores que sejam as intenções do autor ele pode não ter conseguido concretizá-las. Quer num caso quer noutro, como poderia ser possível avaliar as suas obras de arte? Parece que não será assim tão fácil lidar com a questão da relação entre a intenção do artista e uma compreensão do significado de uma obra de arte, que se refira, pelo menos, à avaliação da mesma.
Sem considerarmos a avaliação da obra de arte e se nos centrarmos no conteúdo destas, ou seja, qualquer obra de arte expressa um assunto, um tema, referem-se e são referência de algo e são-no sempre para alguém, razão pela qual veiculam uma mensagem e requerem uma interpretação. Para a perspetiva intencionalista, “a interpretação de uma obra de arte consiste em explicar o seu conteúdo e significado”. Mas como interpretar corretamente? Para tal será que basta saber o tema ou o assunto que trata para poder interpretar corretamente as intenções do artista? Para esta perspetiva, a interpretação correta é aquela que é fiel às intenções, quando conhecidas, do artista, uma vez que a “interpretação é inseparável da obra, ela é inseparável do artista, se é a sua obra”. Segundo a perspetiva intencionalista, a interpretação correta da obra deve atender às intenções do artista respeitando o que o autor poderia ou quereria representar ou significar. Embora a interpretação correta tenha em conta os elementos materiais contidos na obra, quer seja na tela, no livro ou partitura, a sua interpretação não se reduz apenas a estes elementos, apesar de serem estes elemento que mais direta e facilmente o público contacta.
Este último aspeto é o que vai contrastar com a teoria anti-intencionalista, assim denominada. Ou seja, para os defensores desta teoria, o público, que aprecia e que é o recetor da comunicação veiculada pela obra de arte, só tem de dar “atenção às intenções presentes na obra de arte. Seja o que for que se recolha de diários, entrevistas com o artista, manifestos artísticos (…) não é diretamente relevante para o ato de genuína interpretação crítica”.
Para os defensores desta teoria, as intenções do autor são interessantes, enquanto dizem respeito a uma análise psicológica do artista. Mas a origem da obra não pode ser confundida com o seu significado. Para os anti-intencionalistas a interpretação de uma obra de arte deve ter em conta apenas e só os indícios internos, ou seja, o que está contido na obra, seja a música que ouvimos, o poema que lemos, o espetáculo que participamos. Os indícios externos, como as afirmações ou explicações pessoais do artista, são irrelevantes.
Dois defensores desta teoria, que aparecem figurados no Manual adotado, William Wimsatt e Monroe Beardsley, chamaram a este suposto erro de se apoiar nos indícios externos a falácia intencional, tema de um artigo por eles publicado. Esta perspetiva baseia-se na ideia de que “as obras de arte são num certo sentido públicas e que, uma vez criadas, os artistas não devem ter mais controlo sobre a sua interpretação do que qualquer outra pessoa”. Certamente, parte do que os autores quereriam dizer com esta afirmação era que, uma vez uma obra tornada pública, uma vez publicado um texto literário, compete ao público interpretá-lo. O autor não tem qualquer domínio sobre ele, nem assume uma posição privilegiada em relação à sua interpretação. Neste caso, poderíamos perguntar: será a obra mais importante que o seu criador? Será que o significado dos textos é criado pela interpretação dos leitores e não pelas intenções dos escritores?
Uma das críticas fortes à teoria do anti-intencionalismo é ter uma ideia errada da intenção, mas para os defensores desta teoria os indícios externos de nada servem à interpretação. Outra das críticas, talvez a mais difícil de resolver, é a questão da ironia, ou seja, quando alguém usa da ironia e não somos capazes de verificar o contexto ou não damos conta do seu estado de voz, o melhor, para nos certificarmos, é perguntar ao autor da ironia o que queria afirmar. Para um defensor desta teoria poderia dizer que se a ironia não foi evidente então é porque ela será irrelevante, mas qualquer indício que se apoie na informação do autor é importante para a sua interpretação. Uma terceira objeção à teoria anti-intencionalista é ser uma perspetiva muito restrita da crítica da arte, dado que a boa crítica de arte deve ter em conta todo o conjunto de informações disponíveis, quer provenham dos indícios externos quer dos indícios internos.
Júlio Maria

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