sábado, 11 de fevereiro de 2017

David Hume - causalidade, indução e mundo exterior

Hume pensa que, pelo recurso à memória e à imaginação, o ser humano é capaz de associar ideias, até de ideias que não têm correspondência na realidade, como por exemplo a ideia de sereia, de centauro. Contudo, existem princípios como as ideias se unem entre si, a que David Hume chama de “princípios de conexão entre ideias”, sendo que estes princípios de associação ou conexão de ideias podem ser de três tipos: “a semelhança, a contiguidade no tempo e no espaço, e a causa ou efeito”.   

E, para que não reste alguma dúvida acerca desta conexão de ideias, David Hume dá um exemplo claro para cada um dos princípios, ao afirmar que “um retrato conduz naturalmente os nossos pensamentos para o original [semelhança]; a referência a uma andar num edifício leva naturalmente a uma investigação ou discurso a respeito dos restantes [contiguidade]. E se pensarmos numa ferida dificilmente conseguimos evitar uma reflexão sobre a dor que se lhe segue [causa e efeito]”.
No entanto, parece não haver grande dificuldade no reconhecimento destes princípios de associação de ideias, pelo menos no que diz respeito aos primeiros dois, quanto ao último, causa e efeito, parece-os que entra em contradição com a tese empirista de David Hume: como é que alcançamos o conhecimento dessa relação, pelo raciocínio a priori ou pelo empirismo a posteriori?
Recordando-nos daquela distinção que fizemos de que o conhecimento humano para David Hume poderia ser de dois tipos - relações de ideias e questões de facto – e que só este último é que tem um carácter informativo acerca do mundo (regência nº 8). Hume afirma que “todos os raciocínios relativos a questões de facto parecem assentar na relação de causa e efeito. Somente por meio dessa relação podemos ir além da evidência da nossa memória e dos nossos sentidos. Se perguntássemos a alguém porque acredita em alguma questão de facto que esteja ausente – por exemplo, que um amigo se encontra no campo, ou em França, ele apresentar-nos-ia alguma razão, e essa razão seria algum outro facto, como uma carta recebida desse amigo, ou o conhecimento das suas decisões e promessas anteriores (…) e aqui supõe-se sempre que há uma conexão entre o facto presente e aquele que dele é indefiro”. Desta forma, acreditamos na verdade de certas proposições inobservadas porque estabelecemos uma relação de causa e efeito entre elas, ou seja, trata-se de um conhecimento que vai para além da experiência, um conhecimento “dessa relação em nenhum caso é alcançado por meio de raciocínios a priori, mas deriva inteiramente da experiência, ao descobrirmos que certos objetos particulares se acham constantemente conjugados uns com os outros”.
Contudo, “se quisermos nos satisfazer a respeito da natureza dessa evidência que nos assegura das questões de facto, precisamos de investigar como chegamos ao conhecimento das causas e efeitos”. Para Hume, a resposta parece evidente, as causas e efeitos só podem ser descobertos pela experiência, e “não estão fundadas nem no raciocínio ou em qualquer processo do entendimento”.
A ideia de causalidade aparece ligada à ideia de conjunção constante, ou seja, que entre dois tipos de acontecimentos há uma relação entre ambos, há uma causa e um efeito, o que permite avaliar a previsibilidade de determinados acontecimentos. Um acontecimento que se dá de determinada maneira produzirá determinados efeitos. “Por exemplo, sempre que uma bola de bilhar bate noutra, vemos que a segunda se põe em movimento”. Mas o que é que nos garante que o que se passou no passado voltará a repetir-se no futuro? O que é que nos garante que as coisas agora são diferentes?
Anterior a Hume a resposta à questão da causalidade era dada pela ideia de condição necessária, ou seja, um determinado acontecimento não poderia ocorrer sem o outro. “Afirmar que há uma conexão necessária entre causa e efeito é supor que um acontecimento produz inevitavelmente outro; não é apenas uma questão de verificar que sempre que ocorreu um, ocorreu também o outro”. Se a nossa experiência apenas nos mostra que existe uma conjunção constante e não nos mostra o “poder, força, energia ou condição necessária”, de onde vem então a ideia de condição necessária?
A ideia de condição necessária é-nos dada pelo hábito e pelo costume, ou seja, pelos acontecimentos repetidos, quando se dá um acontecimento a nossa mente é levada pelo hábito a “esperar o seu acompanhante usual e a acreditar que ele vai ocorrer. [E, portanto,] esta conexão que sentimos na mente, esta transição costumeira da imaginação de um objeto para o seu acompanhante habitual, é o sentimento ou impressão a partir do qual formamos a ideia de poder ou conexão necessária”. O que nos leva a concluir que a “ideia de conexão necessária consiste, então, apenas nesta conjunção constante que a imaginação atribui aos objetos e não numa força ou poder que esteja presente nas próprias coisas”.
Esta noção de causalidade é fundamental para os fenómenos da natureza, ou seja, “a natureza irá comportar-se no futuro conforme se tem comportado até hoje”, chamamos a este princípio o Princípio da Uniformidade da Natureza (PUN) ou o princípio da indução, é o princípio que expressa a ideia de que a natureza é uniforme que o “futuro será como o passado”. Por exemplo, o sol sempre nasceu até hoje, o que quer dizer que amanhã ele vai nascer novamente, ou seja a observação anterior permite-nos inferir que o que ocorreu no passado irá ocorrer no futuro, o “tipo de raciocínio aqui é a indução”. Mas nada nos diz que o sol possa não nascer amanhã e afirmar que não nascerá não significará uma contradição. Então que razões temos para afirmar que o futuro será como o passado? Só podemos confiar na indução se partirmos do princípio que a natureza é uniforme, constante e regular, como o autor afirma ao dizer que “somos obrigados pelo hábito, em todas as nossas inferências, a transferir o passado para o futuro, sempre que o passado se mostrou inteiramente regular e uniforme esperamos o acontecimento com a máxima segurança, sem deixar lugar para qualquer suposição contrária”.
Que justificação temos para acreditar neste princípio? “Justificamos a nossa crença de que a natureza é uniforme com base no que temos observado até aqui. Vimos acontecer as mesmas coisas repetidamente e concluímos que a natureza é sempre assim, regular e uniforme”. O argumento é circular, incorre numa petição de princípio, é voltar ao início, uma vez que a conclusão deste argumento é uma das suas premissas. Parece que não somos capazes de justificar os princípios que estão na base das nossas crenças acerca do mundo, nem racional nem empiricamente. Razão pela qual todas as afirmações baseadas no raciocínio indutivo são injustificadas, “o que inclui as previsões e as leis científicas. Logo, quase todas as afirmações das ciências empíricas são injustificadas”.
Princípio da Uniformidade da Natureza não é o único que David Hume coloca em questão, a “nossa crença na realidade do mundo exterior é também injustificada”. Hume defende que na nossa mente apenas existem perceções, impressões ou ideias, e que são estas que fundamentam a possibilidade do conhecimento. O que não podemos confundir é a perceção de um objeto com esse mesmo objeto. Neste sentido, perguntar se o mundo exterior é real é perguntar se os objetos que percecionamos têm uma existência independente da nossa perceção. Por exemplo, a mesa que vemos diminuir à medida que nos afastamos ou aumentar à medida que nos aproximamos, existe independentemente de nós e não sofre qualquer alteração. Ainda assim acreditamos que as nossas perceções são causadas pelos objetos exteriores. Mas nós apenas temos acesso aos conteúdos da nossa mente. Desta forma, não sabemos se existe ou não um mundo exterior. Uma vez que “nada está jamais presente no espírito senão as perceções, e ele não tem maneira de conseguir qualquer experiência da conexão destas com os objetos”.
Se não podemos confiar na uniformidade da natureza e se a indução é injustificável, as conclusões a que David Hume chegará aproximá-lo-ão de uma atitude filosófica como o ceticismo moderado.
Júlio Maria

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