Em oposição ao racionalismo de
Descartes para quem os dados dos sentidos seriam sempre duvidosos, encontramos
a perspetiva de David Hume que denominamos de empirismo humeano. A denominação
de empirista na perspetiva de David Hume é uma consideração complexa uma vez
que nem o autor nem os seus contemporâneos usaram o termo. Contudo, “Hume é
empirista na medida em que a sua atitude epistemológica predominante é a
exigência, na construção do conhecimento, de um sistemático recurso à
experiência”[1].
Apesar deste recurso sistemático à experiência o autor da introdução da obra de
David Hume a que nos referimos, João Paulo Monteiro, não deixa de considerar
alguns aspetos fundamentais, tais como: “admite formas de saber totalmente
independentes da experiência (…) caracteriza a sua filosofia como uma ciência
da natureza humana, e os princípios descobertos para esta ciência correspondem,
sobretudo a mecanismos inatos (…) a argumentação através da qual Hume defende
as suas descobertas filosóficas não é meramente empírica”[2]. Talvez
por estas razões “Hume considere a sua atitude filosófica como um ceticismo
moderado”[3].
Ainda em jeito de introdução ao
pensamento humeano impõe-se uma outra distinção: conhecimento a priori e conhecimento a posteriori. Esta distinção, entre
conhecimento a priori e a posteriori, “diz respeito ao modo de
aquisição de crenças (e conhecimento) ”[4]. O
conhecimento denominado a priori refere-se
à perspetiva racionalista e o conhecimento a
posteriori é conhecimento que se baseia na experiência, ou seja, “a
distinção entre conhecimento a priori
e conhecimento a posteriori foi
introduzida para captar esta diferença intuitiva entre dois modos distintos de
conhecer: através da experiência, ou independentemente da experiência e pelo
pensamento apenas”[5].
Descartes acreditava que os céticos
estavam enganados e que seria possível encontrar crenças básicas, evidentes e
que não precisavam de ser justificadas, isto é, que seria possível o conhecimento,
mas para isso seria necessário duvidar de tudo, pôr tudo à prova através da
dúvida metódica: enquanto meio para o conhecimento. Para Hume, por outro lado,
Descartes não terá cumprido tudo o que havia prometido, não duvidou de tudo,
porque se o tivesse feito “jamais teria chegado a certeza alguma”[6], ou
seja, nem mesmo o cogito nem mesmo o
pensamento, para Hume, poderá ser o fundamento do edifício do conhecimento.
Desta forma, se Descartes
fundamenta o edifício do conhecimento com base no pensamento, Hume
fundamentará, em oposição, o edifício nas perceções, sendo “tudo o que há na
nossa mente”[7].
As perceções são de dois tipos, que “se distinguem pelos seus diferentes graus
de força e vivacidade”[8]: as
impressões e as ideias (pensamentos). Como refere David Hume ao afirmar que
entende “pelo termo impressão, assim
todas as nossas perceções mais vívidas, sempre que ouvimos, ou vemos, ou
sentimos, ou amamos, ou odiamos, ou desejamos ou queremos. E as impressões são
distintas das ideias, que são as perceções menos vívidas de que temos
consciência, quando refletimos sobre qualquer das sensações ou movimentos acima
mencionados”[9].
A par desta separação das
perceções, entre impressões e ideias, Hume distingue ainda estas duas “classes
ou espécies” de perceções considerando-as de fracas ou vívidas, de acordo com a
força e vivacidade a que nos referimos ao dizer que “todas as nossas ideias ou
perceções mais fracas são cópias das nossas impressões, ou perceções mais
vívidas”[10]
e sempre que se analisam as ideias ou pensamentos constata-se que “eles se
decompõem em ideias simples copiadas de alguma sensação ou sentimento
precedente”[11].
Fica claro a tónica que Hume assume
sobre a experiência, sobre o que é dado pelos sentidos, sendo que as impressões
são mais fortes e vívidas que as ideias, até porque, como o autor o refere, “um
cego não pode ter noção das cores, nem um surdo dos sons”[12]. Mas se
tiverem o sentido que lhes faz falta ele será a porta de entrada para as
ideias. Por esta razão as ideias, por serem cópias das impressões, são também
perceções, mas menos intensas, menos vívidas do que aquelas que lhe dão origem.
A impressão será a imagem que se imprime em nós através da experiência
sensorial, qualquer que ela seja.
Lançando a tónica sobre as
impressões ou as nossas sensações, estas podem ser de dois tipos: sensações externas
(os sentidos: ver, ouvir, falar, paladar, cheirar, tato) e sensações internas
(as emoções: medo, desejo, fome)[13]. Mas se
as sensações se podem assim dividir, o mesmo se poderia considerar em relação
às ideias que podem ser de dois tipos, simples e complexas, sendo que estas
últimas “resultam da ação da imaginação [ou memória] sobre as ideias simples”[14]. Como o
próprio David Hume refere ao afirmar que “podemos conceber um cavalo virtuoso
porque, a partir dos nossos próprios sentimentos, podemos conceber a virtude, e
podemos uni-la à forma e à figura do cavalo, animal que nos é familiar”[15].
Para David Hume todo o nosso
conhecimento é a posteriori, tem como
fundamento a experiência, as impressões, “sendo os sentidos a fonte principal
de justificação das nossas crenças acerca do mundo”[16].
Contudo, existem raciocínios de tal
forma evidentes que não precisam dos sentidos nem dependem dos dados da
experiência, como por exemplo, “que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do
quadrado dos catetos (…) que três vezes cinco é igual à metade de trinta”[17]. Para
resolver esta questão David Hume propõe que “todos os objetos da razão ou
investigação humanas podem ser naturalmente divididos em dois tipos, a saber,
as relações de ideias e as questões de facto”[18].
A distinção que se acentua entre as
relações de ideias e as questões de facto é que as primeiras
nada nada nos dizem acerca do conhecimento do mundo apesar da sua ‘certeza e
evidência’, uma vez que “as proposições deste tipo podem ser descobertas pela
simples operação do pensamento, sem depender do que existe em qualquer parte do
universo”[19],
mesmo que nunca existisse um triângulo, um quadrado ou um círculo, saberíamos a
sua forma. As questões de facto,
embora da mesma natureza, não são determinadas pela evidência e sendo possível
o seu contrário “não pode jamais implicar contradição”[20]. Razão
pela qual as “questões de facto parecem assentar na relação de causa e efeito. Somente por meio dessa relação podemos ir além da evidência
da nossa memória e dos nossos sentidos”[21].
Assim, o que distingue as relações de ideias das questões de facto é que as primeiras são
“conhecidas usando exclusivamente o pensamento, sem qualquer recurso à
experiência [enquanto
que] as questões de facto só podem ser conhecidas recorrendo à experiência”[22]. Embora
certas e evidentes as relações de ideias
não podem ser fundamento do conhecimento porque nada nos dizem acerca do mundo,
tratando-se apenas de um mero conhecimento de relacionamento de ideias, “daí
que todo o conhecimento acerca do mundo encontre nos sentidos a sua única fonte
de justificação”[23].
Júlio Maria
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