Daniel Kolak e Raymond Martin
Tradução de Célia Teixeira
O leitor tem várias crenças. Mas quais das suas
crenças é conhecimento, se é que alguma o é?
O que é o conhecimento?
O conhecimento não é mera crença. Se o leitor
acreditar e afirmar que sabe algo e alguém acreditar e afirmar que sabe o
oposto, então pelo menos um de vós tem de estar enganado. Quando duas pessoas
acreditam em coisas contraditórias não podem ambas saber aquilo que
afirmam saber. Pois uma das duas crenças tem de ser falsa. Acreditar meramente
em algo, não importa quão ardentemente, não faz disso uma verdade. Para que se
saiba algo, não temos somente de acreditar nisso; isso também tem de ser
verdade. Mas será isto tudo o que é requerido? É o conhecimento mera crença
verdadeira?
Suponha-se que alguém aposta regularmente em cavalos.
Ele tenta sempre apostar em vencedores, mas raramente o faz. Contudo, está tão
cheio de ilusória autoconfiança que sempre que faz uma aposta acredita
ardentemente que o seu cavalo vai ganhar. Nas raras ocasiões em que o cavalo
ganha, saberia o apostador que o cavalo dele iria ganhar? Claro que não. Ele
poderia sentir-se completamente confiante, mas isso é outra história. Para se
saber algo, não se pode apenas adivinhá-lo, mesmo que se acerte, e não o
sabemos por maior que seja a confiança que depositamos no nosso palpite. Assim,
que mais é necessário para o conhecimento, além da crença verdadeira?
Não será ter provas a resposta? Isto é, para o leitor
ter conhecimento não precisará de estar conectado com a verdade daquilo em que
acredita através das provas ou razões que tem para acreditar nisso? E não terão
essas razões ou provas de ser adequadas para justificar a sua crença? O que
torna implausível dizer que o apostador tem conhecimento mesmo que aposte num
cavalo vencedor é que ele não tem boas razões ou provas para pensar que o
cavalo em que ele aposta irá ganhar. Em vez disso, o apostador ganha por sorte.
Mas o que é que são provas? Quando são as provas
adequadas? Estas são perguntas difíceis. Para não nos desviarmos do nosso
problema, pressuponha-se para efeitos de discussão que sabemos o que faz de um
pedaço de informação uma prova a favor de uma certa crença. Pressuponha-se
também que sabemos qual a quantidade de provas necessárias para sustentar
adequadamente uma crença. E ao pressupor que sabemos esta última coisa, não
elevemos demasiado as nossas exigências. Em vez de pressupor que para as provas
serem adequados para o conhecimento terão de estabelecer conclusivamente
a verdade da crença que suportam, pressuponha-se que as provas são adequadas
quando tornam, nas circunstâncias em que existem, a verdade de uma crença mais
provável do que o seu contrário. Se estes pressupostos estiverem
errados, podemos sempre reformulá-los mais tarde. Aceitando-os por agora irá
simplificar as questões e ajudar-nos a manter-nos na direcção certa.
O conhecimento pode ser mais (ou menos) do que mera
crença suportada por provas adequadas. Mas se o conhecimento for pelo menos
isso, então uma das coisas que devemos perguntar às nossas autoridades é que
provas têm elas para as coisas que afirmam saber. E uma das coisas que temos de
perguntar a nós próprios, quando aceitamos certas pessoas como autoridades, é
que provas mostram que essas pessoas são competentes e fidedignas.
Poderá parecer que quando estamos a lidar com uma
pessoa que é uma autoridade bem credenciada seria bastante fácil explicar quais
as provas de que dispomos para mostrar que a nossa autoridade é competente e
fidedigna. Contudo, extraordinariamente, é bastante difícil explicar de uma
forma que deixe claro que as nossas provas são adequadas. Se parece fácil, isso
deve-se provavelmente ao facto de que tendemos a ficar satisfeitos fornecendo
informação que é conhecida, se é que o é, apenas indirectamente, em vez de
seguirmos as provas uma a uma até à fonte. Por exemplo, suponha-se que um
cientista aparentemente reputado lhe diz que a costa leste da América do Sul e
a costa oeste da África costumavam estar juntas. O leitor acredita na sua
palavra. Deste modo, adquire algumas crenças indirectamente; isto é,
adquire-as não com base na sua própria experiência das costas da África e da
América do Sul ou das placas tectónicas da Terra ou das provas existentes,
sejam elas quais forem, que suportam a teoria do deslocamento dos continentes e
assim por diante, mas com base no que o cientista afirma (ou qualquer outra
pessoa) baseando-se na suposta experiência que ele possui nestas matérias.
Claro que o próprio conhecimento do cientista tanto pode ser directo como
indirecto: directo se ele navegou ao longo da costa e fez mapas, analisou
amostras fundamentais do fundo do oceano e assim por diante; indirecto se ele
estudou as informações recolhidas por outra pessoa, assim como mapas e
gráficos. Se o conhecimento for de facto indirecto, e se o cientista souber de
facto do que está a falar, então a informação incluída nesses gráficos, mapas e
dados teve de ter sido conhecida directamente por alguém. Caso contrário, toda
a cadeia de informação, dos cientistas ao leitor, é uma fraude.
Deste modo, se o seu chamado conhecimento é adquirido
com base numa autoridade, então esse conhecimento é, no máximo, indirecto. Mas
se de facto se tratar de conhecimento, então alguém ou um grupo de pessoas teve
de ter adquirido esse conhecimento directamente. Assim, relativamente a alguma
informação que tenha lhe sido transmitida por uma autoridade, e que o leitor
tome como o seu conhecimento indirectamente adquirido, pergunte o seguinte:
Quem o adquiriu directamente? A sua autoridade? Ou outras pessoas? Sob que
condições o adquiriram elas? Quão fielmente lhe foi essa informação
transmitida?
A maior parte das vezes não sabemos responder a estas
perguntas em relação às coisas que aceitamos com base na autoridade. Navegamos
pela vida num oceano de fé. Por exemplo, regressando ao nosso caso anterior,
por que razão acredita o leitor que a pessoa que lhe falou acerca do movimento
dos continentes é um cientista? E mesmo que essa pessoa seja um cientista, por
que razão acredita o leitor que em relação a este tópico ela sabe do que está a
falar? Talvez o nome do cientista seja referido num guia de curso de uma
universidade, caracterizando-o como uma autoridade científica no movimento dos
continentes. Por que razão acredita o leitor que a pessoa que lhe falou acerca
das faixas costeiras é a mesma que aquela cujo nome aparece no guia de curso?
Por que razão acha que o que está escrito no guia é verdade? Mesmo que tenha
boas e adequadas razões para acreditar nestas coisas, por que razão acha que o
cientista, nesta ocasião específica, foi fidedigno?
Acredita em todas estas coisas porque tem uma
experiência directa, adequada para assegurar a sua verdade? Ou acredita nelas
com base na palavra de outras autoridades ainda? Se for esta última hipótese,
então levantam-se novamente as mesmas questões no que diz respeito à sua
relação com estas novas autoridades: Quem são elas? O que lhe garante que elas
são competentes e fidedignas? E assim por diante. Este tipo de questionamento
prolonga-se até chegar àquelas pessoas cujo hipotético conhecimento é directo e
não baseado na autoridade. Nos casos como os que temos vindo a considerar da
autoridade científica do movimento dos continentes, quem seriam essas pessoas?
Tais questões podem parecer tontas, pois levantam
dúvidas sobre se o leitor sabe as coisas que lhe parece óbvio que sabe. Mas não
lhe estamos a pedir para negar que saiba o que julga saber. Estamos a pedir-lhe
que pense como o sabe, para com isso ganharmos alguma compreensão do que
é o conhecimento. Por outras palavras, estamos a pedir-lhe, em primeiro lugar,
para ver quanto daquilo que pensa saber é baseado na autoridade de alguém,
alguém que por sua vez poderá estar ainda a basear aquilo que afirma saber na
autoridade de outra pessoa, e assim por diante; e, em segundo lugar, estamos a
pedir-lhe que persista nas suas perguntas sobre por que acredita que as
pessoas que aceitou como autoridades são competentes e fidedignas. Estamos a
pedir-lhe para fazer estas duas coisas não para minar a autoridade, mas porque
é apenas ao fazê-las que poderá começar a compreender o que é o conhecimento.
Contudo, se e quando começar a tomar tais questões seriamente, irá quase de
certeza começar a olhar para as autoridades de forma mais crítica e reflexiva
do que costumava fazer. Pode até começar a duvidar da competência ou da
fidedignidade de algumas das autoridades e também da razoabilidade da sua
tendência para confiar tão cegamente nelas como costuma fazer. Por outras
palavras, pode começar a pensar mais por si mesmo e a apoiar-se menos nos
outros para pensarem por si. Tais são as consequências, inevitáveis, de
questionarmos a natureza do conhecimento. Isto explica por que razão as
autoridades raramente o encorajam a fazê-lo. Do ponto de vista delas, o
questionamento do leitor acerca da natureza do conhecimento é perigoso.
Resumindo: O seu conhecimento indirecto, se se tratar
de facto de conhecimento, tem de estar fundado, em última análise, no
conhecimento directo de alguém. Portanto, se as autoridades através das quais
aprendeu o que pensa saber indirectamente souberem realmente aquilo que lhe
ensinaram, então alguém teve de aprender isso (ou as provas que suportam a sua
plausibilidade) directamente. Além disso, se souber que as autoridades que lhe
ensinaram estas coisas são competentes e fidedignas, então ou sabe isto
directamente ou se o souber com base na autoridade de outra pessoa, tem de
saber directamente que essa autoridade é competente e fidedigna. Em resumo, no
que diz respeito ao conhecimento, há um limite para a confiança que se pode ter
nos outros. Em última análise, a responsabilidade final é sua.
Mas como é que alguém sabe algo directamente?
Não será a experiência a resposta? Como poderia o leitor saber algo
directamente sem ser com base na sua experiência? Como poderiam os outros saber
algo directamente sem ser com base nas suas experiências? A experiência,
parece, terá de ser a resposta. Mas considere-se as implicações desta ideia.
Muitos de nós julgam saber muitas coisas, não apenas
acerca de nós mesmos mas também acerca de todo o universo. Julgamos saber
distinguir a realidade da fantasia num número surpreendente de matérias.
Contudo, se, em última análise, sabemos tudo o que julgamos saber com base na
nossa própria experiência, como poderíamos saber tanto? Suponha, por exemplo, o
caso do seu hipotético conhecimento de que o universo é enorme, que está em
expansão e que tem biliões de anos de idade. Como poderia o leitor saber isto,
em última análise, com base na sua própria experiência? Teve — ou está a ter —
experiências suficientes para justificar tais crenças?
Pode, é claro, basear-se nas suas experiências do
passado para apoiar as suas experiências do presente, mas primeiro tem de saber
se essas experiências do passado aconteceram de facto. A sua pessoa que está
aqui e agora a ler estas palavras não tem acesso directo a qualquer experiência
que não esteja presentemente a ter. Assim, como sabe que as experiências que
julga recordar aconteceram de facto? Afinal de contas, tem de saber isto com
base nas suas experiências do presente — neste caso, provavelmente as
suas memórias do presente.
Não pode saber directamente, com base em qualquer
experiência do passado, que teve uma certa experiência no passado. As suas
experiências do passado já eram. Pode saber muitas coisas indirectamente,
com base nas suas experiências do passado. Para saber coisas directamente,
tem de as saber com base nas suas experiências do presente. De que outro
modo poderia ser? Mesmo que pegue num caderno com velhos recortes de jornal,
num diário, num álbum de fotografias, e assim por diante, estas coisas existem
no presente. As coisas que está neste momento a segurar nas mãos não estão no
passado. Tal como as suas mãos, estão no presente. Estão aqui e agora.
Assim, pode haver dois tipos de conhecimento
indirecto: podemos saber algo com base no que alguém nos disse em vez de ser
com base na nossa experiência, e podemos saber algo com base na nossa
experiência do passado (aquilo que presentemente dizemos a nós
próprios?) em vez de ser com base nas nossas experiências do presente.
O conhecimento acerca do passado tem, aparentemente,
de se basear naquilo que sabemos directamente no presente. O leitor não tem
qualquer tipo de acesso directo ao passado. Assim, se o que quer que seja que
sabe se baseia no que sabe directamente, e se tem de ter um acesso directo ao
que quer que seja que sabe directamente, e se a única coisa a que tem acesso directo
é à sua experiência do presente, então a sua experiência do presente é a fonte
última de tudo o que sabe.
Raramente olhamos cuidadosamente para as nossas
experiências. Neste capítulo, começámos a fazer precisamente isso. Olhar para
as nossas experiências poderá parecer invulgar, mas não é difícil fazê-lo. Não
é preciso saber ciência nem matemática para o fazermos. Não temos de saber seja
o que for que não saibamos já. Nem é necessário um grande esforço. É fácil
olhar atentamente para as nossas experiências.
E mal o leitor o faça, será também fácil observar o
enorme abismo entre as suas experiências e todas aquelas coisas que pensa saber
acerca de si próprio e do mundo. É bastante surpreendente examinar as suas
experiências e depois compará-las mesmo que seja com uma lista radicalmente
incompleta de coisas que julga saber. Tire uns minutos para ponderar sobre a
sua experiência neste momento, comparando-a com a lista de algumas coisas que
julga saber. É incrível tomar consciência de que pode estar a basear a sua
afirmação de que sabe essas coisas todas que julga saber nas experiências que
está a ter neste momento, não acha?
Consegue ver o incrível abismo que há entre as suas
experiências do presentes e aquilo que julga saber? Se sim, então pergunte-se o
seguinte: Se aquilo acerca do qual está neste momento a ter experiência está
"aqui", e se todas aquelas outras coisas que julga saber estão
"lá", como chegou daqui a lá? Que processo de inferência empregou?
Que razões tem para acreditar que esses processos de inferência são fidedignos
— que conduzem à verdade, a conclusões que não são meras histórias de faz de
conta mas a realidade? Sabe a resposta a estas questões? Será que alguém sabe?
Uma possibilidade é a ciência fornecer a ponte entre a
experiência e a realidade ao explicar como as experiências são causadas.
Tome-se, por exemplo, a experiência de ver o pôr-do-sol. Sabemos directamente
que tivemos essa experiência. O que não sabemos directamente é por que razão
tivemos essa experiência em vez de outra qualquer ou mesmo nenhuma. É
amplamente aceite que a função das teorias científicas é fornecer explicações
sobre as experiências. Assim, explica-se a sua experiência visual do pôr-do-sol
pela emissão de raios de luz do Sol que viajam através do espaço e entram nos
seus olhos enviando um impulso electroquímico ao longo dos nervos ópticos até
ao seu cérebro. Se tais experiências científicas são a melhor explicação
disponível da experiência, então podemos afirmar legitimamente que essas
teorias fornecem a ponte entre a experiência e a realidade.
Mas há dois problemas com esta resposta. Um deles é o
pressuposto de que as teorias científicas explicam a experiência. Não é que o
pressuposto seja falso. O exemplo do pôr-do-sol ilustra uma das formas como as
teorias científicas podem pelo menos contribuir para um explicação da
experiência. O problema é que a ciência invariavelmente pressupõe a
realidade de um mundo "lá fora", para lá do alcance da nossa
experiência directa, relativamente à qual tentamos usar as teorias científicas
para o alcançar. Por outras palavras, a ciência conduz-nos à realidade "lá
fora" ao pressupor que tal realidade existe. A ciência não nos conduz
"daqui" para "lá", conduz-nos de "lá" para
"aqui".
Além disso, a ciência nem sequer nos conduz realmente
para "aqui". Considere-se outra vez exemplo da observação do
pôr-do-sol. Em lado algum da explicação científica da experiência visual do
pôr-do-sol faz a ciência a ligação entre processos físicos e experiências
mentais. Se olhar, por exemplo, para um manual sobre a fisiologia do sistema
visual humano, não irá encontrar discussão alguma sobre os estados mentais
subjectivos. O que irá encontrar em vez disso são explicações fisicalistas
muito complicadas sobre o modo como a visão funciona. Estas explicações não
ligam a fisiologia da visão às experiências mentais.
Temos vindo a pressupor que todo o conhecimento tem de
estar baseado, em última análise, no conhecimento directo e que todo o
conhecimento directo tem de estar baseado nas experiências do presente. Se isto
for verdade, parece que será muito difícil explicar como sabemos a maioria das
coisas que julgamos saber, incluindo a maior parte da ciência. Assim, talvez
algum destes pressupostos seja falso. Isto pode pelo menos salvar a nossa
convicção de que temos a maior parte do conhecimento que julgamos ter. Mas a
que custo?
Se uma das nossas afirmações acerca do conhecimento é
falsa, então ou algum do nosso conhecimento é meramente indirecto ou algo do
que sabemos directamente não sabemos com base na nossa experiência do presente
mas de outro modo qualquer. Mas o que quererá dizer que temos mero conhecimento
indirecto — que não é baseado, em última análise, em conhecimento directo? E
como poderíamos saber algo directamente sem o sabermos com base da nossa experiência
do presente? O que poderá querer dizer directo, nesse caso?
Uma possibilidade é que o conhecimento repousa em
última análise em pressupostos que não são eles próprios conhecimento. Nesse
caso, poderíamos saber algo mesmo que não o soubéssemos directamente.
Poderíamos sabê-lo com base em algo que nos limitamos a pressupor. Por exemplo,
talvez nos limitemos a pressupor que a memória é geralmente fidedigna (mesmo
que não o saibamos) e assim podemos saber várias coisas com base na
memória que não poderíamos saber de outro modo. Mas se podemos obter
conhecimento meramente por meio de pressupostos, então parece que podemos saber
praticamente tudo, sem qualquer esforço. Esta concepção do conhecimento iria,
aparentemente, dar-nos gratuitamente aquilo que apenas deveríamos obter através
do trabalho duro e honesto. Como no exemplo do apostador, a mera sorte parece
vulgarizar tanto o "conhecimento" que deixaria de ser conhecimento.
Outra possibilidade é a de que existe uma forma de
estar ligado à verdade, e logo de adquirir conhecimento, através de outros
meios que não a experiência directa. Um termómetro fidedigno, por exemplo,
varia a sua leitura da temperatura de uma forma que transmite a temperatura
correcta apesar de (presumivelmente) não ter qualquer experiência directa.
Talvez, também nós, sem o sabermos, estejamos a acompanhar o ritmo escondido da
realidade e estejamos deste modo a adquirir conhecimento sem sabermos como nem
porquê. Sabemos coisas não porque sabemos que as sabemos, mas porque, sem o sabermos,
estamos ligados à verdade de forma fidedigna.
Apesar de talvez existir conhecimento deste tipo —
conhecimento que não se baseia em provas adequadas —, não será um tipo de
conhecimento "estúpido" ou, no melhor das hipóteses,
"sortudo"? Se é, então, como vimos, seria questionável chamar
"conhecimento" a este tipo de conhecimento. E mesmo que, quando o
possuíssemos, merecesse ser chamado conhecimento, é difícil ver como podemos
dar conta do conhecimento que julgamos ter apelando para ele. Considere-se, por
exemplo, o que poderá querer dizer a noção de "estar fidedignamente ligado
à verdade".
Eis uma coisa que pode querer dizer: a crença
verdadeira de uma pessoa está fidedignamente ligada à verdade só se o que
causou (pelo menos em parte) essa pessoa a ter essa crença verdadeira foi o que
faz efectivamente a crença ser verdadeira. Chame-se a esta ideia acerca do
significado de uma crença verdadeira de alguém estar fidedignamente ligada à
verdade, a teoria causal. Para ver como a teoria causal pode funcionar
na prática e também para ver como podemos apelar para ela para explicar como se
pode considerar que certas crenças verdadeiras que as pessoas têm estão
fidedignamente ligadas à verdade, suponha-se, por exemplo, que o leitor
acredita correctamente que neste momento está uma secretária à sua frente
porque a vê. Neste caso, estar neste momento uma secretária à sua frente é pelo
menos uma causa parcial da razão pela qual a está agora a ver, o que é em si
uma causa parcial da sua crença de que neste momento está uma secretária à sua
frente. Logo, segundo a teoria causal, a sua crença verdadeira de que neste
momento está uma secretária à sua frente está fidedignamente ligada à verdade.
Funciona tudo às mil maravilhas com este exemplo. Mas
será que a teoria causal sobre o significado da ideia de que a crença
verdadeira de uma pessoa está fidedignamente ligada à verdade irá também
funcionar como uma teoria geral sobre o conhecimento — isto é, em todos os
exemplos em que julgamos claramente ter conhecimento? Há razões para achar que
não. Por exemplo, suponha-se que sem saber, um conhecido seu — Tomás — tem um
gémeo verdadeiro que vive com ele. Suponha-se também que, um dia, quando estava
a ir para o trabalho, por acaso vê o Tomás a entrar nos correios. Finalmente, suponha
que o facto de ver o Tomás a entrar nos correios causou a sua crença de que o
Tomás tinha entrado nos correios. Dadas estas suposições, a sua crença de que o
Tomás entrou nos correios é verdadeira. Mas será que a sua crença verdadeira
também está fidedignamente ligada à verdade? Segundo a teoria
causal, ela estaria fidedignamente ligada. Pelo menos parcialmente, porque o
Tomás entrou nos correios, o leitor viu-o a entrar nos correios e,
parcialmente, porque o leitor o viu a entrar nos correios passou a acreditar
que o viu entrar nos correios. Assim, de acordo com a teoria causal, a sua
crença de que Tomás entrou nos correios não seria apenas verdadeira, mas
estaria fidedignamente ligada com a verdade, e assim, de acordo com a teoria
causal, não acredita somente algo verdadeiro: sabe-o. Mas, segundo as
circunstâncias descritas, será que saberia mesmo que o Tomás entrou nos
correios?
Uma razão para pensar que, segundo as circunstâncias
descritas, não saberia que o Tomás entrou nos correios é que, nessas
circunstâncias, formaria a mesma crença de que o Tomás entrou nos correios
mesmo que não tivesse sido o Tomás a entrar nos correios mas o seu irmão gémeo.
Assim, poderá parecer que apesar de ter formado uma crença verdadeira nesta
ocasião, fê-lo de uma forma e sob circunstâncias nas quais a sua crença poderia
facilmente ter sido falsa. Por outras palavras, formou uma crença verdadeira,
mas foi por pura sorte que a sua crença se revelou verdadeira. Presumivelmente,
crenças que se revelam verdadeiras por pura sorte não estão fidedignamente
ligadas à verdade, pelo menos não da forma certa para que contem como
conhecimento. Assim, este exemplo sugere que a satisfação da teoria causal não
garante que as crenças verdadeiras estejam fidedignamente ligadas à verdade da
forma correcta para que possam contar como conhecimento.
Pode-se usar um tipo diferente de exemplo, de modo
ainda mais notório, para ilustrar como a satisfação das condições causais iria
recompensar a sorte ao permitir que certas crenças contem como conhecimento.
Suponha-se, por exemplo, que um apostador que não tem qualquer informação
sólida, faz o seguinte tipo de aposta de dois euros em duas corridas de cavalos
consecutivas: ganhará vinte euros se acertar no vencedor em pelo menos uma das
corridas ou em ambas, caso contrário perderá. Ao fazer a sua aposta ele escolhe
Gumshoe para a primeira corrida e Tagalong para a segunda. Ele escolhe estes
cavalos não com base em boas provas de que eles irão ganhar mas pela mais
frívola das razões: a sua mãe chama-se Gumshoe e a sua irmã Tagalong.
Suponha-se também que, antes da primeira corrida começar, o jogador é chamado e
levado a sair do local onde as corridas se realizam, só regressando após o
término da segunda corrida. Enquanto ele está fora, esquece-se que tipo de
aposta fez nas primeiras duas corridas e forma a enganosa crença de que fez uma
aposta normal de dois euros apenas na primeira corrida e apenas em Gumshoe.
Acontece que, enquanto ele está fora e sem o saber, Gumshoe ganha de facto a
primeira corrida, e Tagalong acaba em último na segunda. Ao regressar ao
hipódromo, e ainda sem saber os resultados de nenhuma das corridas, o apostador
dirige-se ao guiché do caixa e apresenta o seu bilhete. Sem dizer uma única
palavra o caixa dá-lhe 20 euros, o que leva o apostador a inferir que Gumshoe
ganhou a primeira corrida.
Neste exemplo, parece que o apostador está, segundo a
teoria causal, fidedignamente ligado à verdade daquilo que acredita. Ele
acredita que Gumshoe venceu a primeira corrida, e uma vez que Tangalong perdeu
a segunda corrida, o caixa não lhe pagaria os vinte euros pelo bilhete se o
Gumshoe não tivesse ganho na primeira. Mas será que podemos dizer que o jogador
sabe que Gumshoe ganhou a primeira corrida? Ele acredita que Gumshoe
venceu, é verdade que Gumshoe venceu e a forma como ele formou essa crença
está, segundo a teoria causal, fidedignamente ligada com o que tornou a crença
verdadeira. Contudo, muitas pessoas teriam relutância em afirmar que o
apostador sabia que Gumshoe venceu a primeira corrida. Apesar de o apostador
poder estar, segundo a teoria causal, fidedignamente ligado ao que tornou
verdadeira a sua crença de que Gumshoe ganhou, é pura sorte que ele esteja
fidedignamente ligado a tal crença. Os dois exemplos dados sugerem que as crenças
verdadeiras podem satisfazer a teoria causal e, no entanto, não estarem
fidedignamente ligadas à verdade da forma correcta para que contem como casos
de conhecimento.
Alguns exemplos diferentes sugerem que as crenças
verdadeiras podem ser exemplares de conhecimento apesar de não satisfazerem os
requisitos da teoria causal. Uma das coisas que o leitor sabe, por exemplo, é
que não há hipopótamos que sejam mais pequenos que uma formiga. Assim, supondo
que as condições causais são verdadeiras e que constituem um requisito para o
conhecimento, o que seria a ligação causal entre o facto de que não há
hipopótamos mais pequenos que uma formiga e a sua crença de que não há
hipopótamos mais pequenos do que uma formiga? É difícil dizer. Ou, tome-se o
caso do conhecimento matemático — por exemplo, o seu conhecimento de que 7 + 5
= 12 — ou o chamado conhecimento subjuntivo — por exemplo, o conhecimento de
que se estivesse para chover, eles cancelariam o jogo. Como podem tais crenças
verdadeiras, que o leitor também sabe (ou pode saber) que são verdadeiras,
satisfazer os requisitos da teoria causal? A resposta, aparentemente, é que não
satisfazem tais requisitos. Mas se tais crenças são de facto (ou podiam ser)
conhecimento e não podem satisfazer a teoria causal, então não pode ser
correcto que as crenças verdadeiras de uma pessoa estejam fidedignamente
ligadas à verdade, e logo que sejam conhecimento, só no caso em que (isto é,
se, e só se) a pessoa foi causada (pelo menos parcialmente) a ter essa crença
verdadeira por aquela mesmíssima coisa que torna a crença verdadeira.
Talvez haja uma forma de explicar o que significa
estar fidedignamente ligado à verdade que evite tais dificuldades. Caso
contrário, é tentador pressupor que não podemos dar conta do conhecimento se eliminarmos
o requisito de que temos de ter provas adequadas para o que acreditamos,
substituindo-o simplesmente pelo requisito de que as nossas crenças têm de
estar fidedignamente ligadas à verdade. Por exemplo, no caso do apostador, o
problema, aparentemente, é que ele não tinha razões adequadas ou provas a favor
da sua crença de que Gumshoe ganhou a primeira corrida. Se é isto que impede
que a sua crença de que Gumshoe ganhou possa ser tomada como conhecimento,
então estar fidedignamente ligado com o que torna a sua crença verdadeira pode
não se suficiente para o conhecimento. E isso conduzir-nos-ia outra vez aos
problemas a que procurámos fugir ao substituir uma teoria do conhecimento
baseada em provas por uma teoria baseada em relações fidedignas.
A chave para resolver os enigmas que temos vindo a
considerar consiste em descobrir as coisas que conhecemos directamente e
o modo como as conhecemos. Contudo, não é fácil explicar como podemos saber
algo directamente, excepto, talvez, aquilo de que estamos neste momento a ter
experiência. Mas isto não nos deixa com muito. O conhecimento, que tem de ser
em última análise baseado na experiência directa, requer que tenhamos de ir
para lá da experiência. Por outras palavras, o conhecimento requer teoria.
Sem teoria, nós, que em última análise não estamos em sítio algum e nada somos,
não sabemos praticamente nada de nada.
Mas como sabemos se as nossas teorias são verdadeiras?
Retirado do livro Sabedoria
Sem Respostas (Lisboa: Temas e Debates, 2004)
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