quarta-feira, 9 de novembro de 2016

LIBERDADE

Porque razão está a ler isto?
Porque quer ler. Mesmo que alguém lhe tenha dito para o fazer, não faz diferença: se não quisesse fazer o que lhe disseram, não estaria a ler isto. Mas está a ler. Portanto, em qualquer dos casos, quer queira simplesmente ler quer lhe tenham dito para ler e agora está a ler porque quer fazer o que lhe disseram, está a fazer o que quer. Mas ao ler estará a agir em liberdade? Isto é, será que depende de si o facto de estar a ler?
A resposta pode parecer óbvia. Está a fazer aquilo que quer. Logo, está a fazê-lo em liberdade. Mas será que aquilo que quer depende de si? Quando está a fazer aquilo que quer, está o leitor em controlo – controla os seus quereres – ou será que são os seus quereres que o controlam?
Suponha que tinha ordens para ler isto. Neste caso, iria rapidamente perceber que não tem liberdade, que estaria sob o controlo das ordens. Uma ordem é uma instrução, normalmente verbal. Mas suponha que as ordens não eram dadas sob a forma de instruções mas antes sob a forma de anseios directos que o faziam agir de determinada forma.
Estar sob o controlo de anseios seria mais subtil do que ser controlado por instruções verbais, pois poderia facilmente pensar que os anseios estavam sob o seu próprio controlo. Poderia fingir que esses anseios dependiam de si. Poderia até chamar-lhes quereres. Quando sentia o impulso para fazer X, poderia dizer para si próprio “Eu quero fazer X”. Poderia assim inteligentemente esconder de si próprio o facto de que seja lá o que for o que impulsiona a agir (seja um programa interno ao qual não tem acesso directo ou um programador externo) se encontra escondido porque o leitor tem quereres em vez de ordens. Para o levar a ler isto, por outras palavras, o programa enviar-lhe-ia o querer – uma instrução não verbal – como uma forma de o levar a agir se,m que se apercebesse disso. Neste caso, será que o que o leitor quer depende de si? Seria livre? Parece que não. Teria no máximo apenas a ilusão da liberdade. Fazer o que quer iria mascarar o facto de os seus quereres estarem a controlá-lo, e não o contrário.
Não estará o leitor exactamente nesta situação? O leitor não faz os seus quereres, apenas os tem. Chegam-lhe à sua consciência despoletando vários comportamentos. Mas, se não escolhemos os nossos quereres e se os nossos quereres determinam as nossas escolhas e as nossas escolhas determinam as nossas acções, então, em última análise, as nossas acções não dependem de nós, e, logo, parece que não as executamos em liberdade. Portanto, mesmo que ao ler isto neste momento esteja a fazer aquilo que quer, dado que os seus quereres não dependem de si, ler isto também não depende de si e, assim, parece que não está a ler isto em liberdade.
Suponha-se que, contudo, quer e não quer fazer algo – por exemplo, que quer comer chocolate e ao mesmo tempo também não quer comer chocolate, isto é, que quer resistir ao seu desejo de comer chocolate. O que irá fazer? Bom, qual é o querer mais forte? Irá agir – tem de agir – de acordo com o seu querer mais forte. Assim, o seu comportamento – seja lá o que for que acabe por fazer – será apenas um mero produto de um querer suplantar outro.
Mas se continua a achar que tem liberdade, então pergunte-se a si próprio: se é livre, quando começou a sê-lo? Pois, se é livre agora, deve ter havido uma primeira acção livre. Certamente que não nasceu livre. Quando acabou de nascer reagiu ao ambiente à sua volta de forma basicamente pré-programada. Tal como não escolheu ter dois olhos, um nariz, um cérebro, cada um dos seus membros e assim por diante – nenhuma desta coisas dependeu de si – também não escolheu como reagir à luz, ao calor, à fome, à dor, ou mesmo à cara sorridente da sua mãe. Todos nós iniciámos a vida sem qualquer liberdade. Assim, as nossas acções não podem de modo algum ser livres a menos que tenha havido uma primeira acção livre executada algum tempo depois de termos nascido. Quando ocorreu a sua primeira acção livre? Se não pode ter executado uma primeira acção livre, então também não pode ter executado uma segunda acção livre, ou uma terceira e assim por diante até à sua acção presente de ler estas palavras.
KOLAK, Daniel e MARTIN, Raymond, Sabedoria sem respostas – uma breve introdução à filosofia, 2004. Lisboa: Temas e Debates, pp. 43-47

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